A verdade da moda agora é ser você mesma
Logos, monogramas, frases de efeito: quem tem algo a dizer anda transformando a roupa, os acessórios, a lingerie e até as unhas em cartazes
Hanayo “Hana4” Ohno é uma nail artist de ponta do Japão. Ela maneja o pincel e o esmalte com iquebanas, arabescos e cria ideias como garras ovaladas cinza-asfalto com tufos de pelo de igual cor nas cutículas. A inventividade a aproximou da moda, com um convite para usar os vidrinhos da edição limitada Sonia Rykiel X Lancôme em seus trabalhos. Em janeiro, um encontro com a dançarina também japonesa de street jazz Ai Shimatsu, que acumula aparições em palcos com Madonna, Pharell Williams e Beyoncé, levou a afinidade ao extremo. “Não decoro as unhas, mas, como o que ela faz é incrível, quis experimentar”, conta Ai. “Estava com minha Goyard e disse: ‘Vamos fazer esse desenho porque nunca vi nada parecido’.” As unhas foram monogramadas com o chevron pontilhado da grife parisiense em fundo idêntico ao da bolsinha Belvedere, sua companheira há dois anos.
Ai resume bem o atual espírito da moda: doses de divagem hip-hop, um amor iconoclasta por grandes marcas e uma obsessão por ser única e estampar ideias. Na base desse look está o real streetwear, aquele do Bronx do fim dos anos 1970. Vale espiar o visual na série The Get Down. Nela, há uma reconstituição fiel do jeito de vestir dos adolescentes da época. Na nascente era do grafite, as jaquetas jeans eram pichadas, e os casacos, decorados com botões roubados das mães e avós. A pouca grana deles era investida nos tênis (alô, revival do Puma). O culto ao par impecável, para mostrar que era novo, e, portanto, o dono alguém rico, era extremo: alguns iam aos clubs andando com os tênis protegidos por sacos plásticos para não sujá-los no caminho. Logos de marcas como Chanel foram incorporados à produção e o sportswear dava o tom.
Calças de jogging, moletom e bonés de time à moda dos jogadores de basquete, os raros ídolos negros daqueles anos, eram extragrandes (alô, Balenciaga) –– aparência que remetia aos presidiários. Impedidos de usar cintos, com os quais poderiam se enforcar, os presos andavam com uniformes grandes, caindo. O desconforto gerou um código de comunicação: para exibir a boa relação fora das grades, eles deixavam à mostra a cueca de seda. “A moda tinha um poder transcendental. Era preciso um look que gritasse: ‘Vista-se como uma estrela. Seja uma estrela’”, diz Catherine Martin, figurinista do seriado.
Do hip-hop original, ficaram o oversized, o esporte e a logomania. Mas a versão 2017 dos anos 1980 tem outro acabamento e intenção. “É um tanto de rebeldia e outro de glamour”, diz Iza Dezon, do birô de tendências PeclersParis. O oversized fala agora só de conforto, o esporte remete à liberdade de movimento – pense na nova campanha da YSL, com a modelo em escarpins-patins – e o uso de monogramas é diferente. As marcas-fetiche são as mesmas: Gucci, Chanel, Saint Laurent, Dior e Louis Vuitton (GG, CC, YSL, CD e LV).
No entanto, não ocupam o Olimpo. “A ideia é dessacralizar a grife. O logo não é mais um símbolo de status. É usado com ironia, pichado e nada imaculado.” A novidade máxima cabe à geração hashtag: do mesmo jeito que aderimos ao duplo G e C e ao chevron pontilhado, vestimos camiseta de banda de rock, ostentamos uma causa, veiculamos frases de autoajuda e mantras. Se há 30 anos éramos outdoors ambulantes, hoje somos cartazes manifestantes. Até o Oscar foi de passarela à passeata. Ruth Negga espetou a fitinha da American Civil Liberties Union em seu Valentino, Emma Stone e Dakota Johnson optaram por pins da Planned Parenthood e Ava DuVernay tuitou que vestia Ashi Studio, marca de um país majoritariamente muçulmano, o Líbano. Sinais dos tempos: a nova ordem mundial obrigou as pessoas a mostrar em que lado do muro estão.
De olho na atração pela estética urbana, livre e subversiva, as marcas-monogramas não hesitaram a se “neo-hip-hopizar” ou a se “skatizar”. O skatista Adam Crigler fez a campanha do Allure Homme Sport Cologne, da Chanel. A Gucci filmou Ko Hyojoo, virtuosa sul-coreana de skate longboard. A Louis Vuitton se uniu à Supreme, marca norte-americana dedicada à cultura do skate. Larry Clark capturou para a Dior Homme os meninos que manobram no pátio do Museu de Arte Moderna de Paris. No vídeo Maxi-twillys Cut, da Hermès, skatistas voam com lenços na pista. Na passarela, sobram produtos de espírito das ruas e logogramados.
Desde a estreia de Nicolas Ghesquière na LV, no inverno 2015, os códigos da maison vêm reaparecendo: o monograma clássico em bottines e chinelos, o fecho LV, a flor do logo perfurada num vestido. A Fendi não hesitou em juntar óculos e brincos com o grande F. A Hermès respinga suas marcas principalmente nos sapatos: ao H da sandália Oran e da bolsa Constance, se juntam o fecho da Kelly e as argolas da Chaîne d’Ancre. A Chanel passa dos símbolos tradicionais (matelassê, tweed, corrente, camélia) ao duplo CC em todo tipo de produto e Karl Lagerfeld fez T-shirts de cores lavadas, como os fãs de camiseta de banda adoram, com o nome Coco evidente. O YSL dá forma a brincos, broches e saltos. Dolce & Gabbana vão do chinelo às camisetas monogramadas. A Dior coloca o nome na lingerie e revive o CD. A Versace estampa “equality”, “love” e “unified” no inverno 2018. E Alessandro Michele coloca a Gucci à frente desse último grito da moda. Listar as peças daria horas de leitura – quase nada escapa à intervenção do estilista. “Ele representa a liberdade máxima de estilo: tudo é misturado”, afirma Candice Fragis, do e-commerce Farfetch.
As combinações entre o esporte, o hip-hop, o minimalismo e o ladylike são infinitas. Geralmente incluem sapatos com salto gatinho, mules e bolsas de mão, e a alfaiataria é um recurso para impedir que o moletom extralarge com capuz, peça-fetiche, tome conta do look. “O real fashion statement agora é ‘ser você mesma’”, diz Candice. Aqui mora o pingo no “i” de individualidade do streetwear de luxo: no auge do amor-próprio – e na mais pura demonstração do valor de cultivar a própria marca –, pipocam peças com o nome ou as iniciais da dona. É o caso dos fechos de metal da marca francesa Clare V. – Lena Dunham, de Girls, carrega uma bolsa com um LD dourado.
Na previsão de cool hunters, isso dura mais uma estação nas passarelas e dois anos nas ruas. O que vem, então? Stella McCartney deu a pista em seu desfile de inverno 2018: no final, modelos diziam as palavras “love” e “faith” ao som de George Michael e Beatles. O esporte e o oversized apareceram, mas não foram as letras que gritaram. Se você tem algo a dizer, sugere Stella, que seja em alta e boa voz.